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Falha no Orçamento de Estado cria vazio nas medidas fiscais

Governo não clarificou aplicação no tempo das leis fiscais do Orçamento de 2010 antes da sua entrada em vigor.

É a “trapalhada” no Orçamento de Estado de 2010. Fiscalistas e constitucionalistas defendem que a aplicação da Lei do Orçamento terá de ser clarificada, pois algumas das medidas fiscais aí previstas não se aplicam antes da sua entrada em vigor, a 29 de Abril. Isto porque, o Governo afastou os efeitos a 1 de Janeiro das leis fiscais s, mas não acautelou normas transitórias para clarificar a aplicação no tempo das novas medidas. Em causa está, por exemplo, os bónus dos gestores da banca que escapam, tudo indica, à nova taxa nos primeiros quatro meses do ano.

O Ministério das Finanças confirmou ao Diário Económico que até à entrada em vigor do Orçamento, entre 1 de Janeiro e 28 de Abril, se aplicam as regras do OE/2009. Mas neste período não poderão ser aplicadas quase nenhumas das alterações fiscais previstas para 2010, ao contrário do que aconteceu anos anteriores em que o Orçamento de Estado foi publicado mais tarde, como o de 2000, mas que referia expressamente no documento a produção de efeitos ao início do ano.

“A produção de efeitos resulta da conjugação do disposto nos artigos. 4º e 41º da Lei de Enquadramento Orçamental (LEO)”, avançou fonte oficial das Finanças, em resposta sobre qual o direito que se aplica às situações financeiras, incluindo as fiscais, até à entrada em vigor do Orçamento, a 29 de Abril. Em causa está, segundo as Finanças, a possibilidade de prorrogação do Orçamento do ano anterior, quer quanto às receitas a cobrar, quer via duodécimos em relação às despesas, quando o novo instrumento de gestão anual do País não tenha sido oportunamente aprovado.

O fiscalista Diogo Ortigão Ramos diz a este respeito que “do ponto de vista financeiro (que não fiscal) a vigência do OE de 2009 foi prorrogada até 28 de Abril de 2010″.

Mas também aqui surgem dúvidas a alguns especialistas, havendo mesmo especialistas de consultoras que apontam que a prorrogação do OE/2009 até à entrada em vigor do novo não será aplicável em matéria de impostos, atendendo que a LEO determina que o ano económico coincide com o ano civil e este é o período abrangido pelas regras de determinação do rendimento em IRS e pelas declarações de imposto.

Luís Fábrica, especialista em direito administrativo, frisa, porém, que a LEO “tem valor reforçado” no sentido de condicionar os termos em que são feitos os Orçamentos, pelo que a lei do OE/2010, do ponto de vista jurídico, “deve obediência” à Constituição e à LEO. Ainda, assim, Luís Fábrica não esconde que o facto de entrar em vigor a 29 de Abril “tem inconvenientes do ponto de vista administrativo e de relacionamento com os cidadãos”.

Risco de impugnações
Fiscalistas são unânimes em afirmar que vai aumentar a complexidade do processo de tratamento de impostos da máquina tributária. Em causa está a coexistência de regras distintas, nomeadamente em matéria de IRC, IRS e benefícios fiscais. A este respeito João Sousa partner da consultora Ernst & Young defende mesmo que a existência de regras diferentes, ao nível dos impostos sobre o rendimento, “não é exequível”.

Cenário que leva o ex-presidente da Comissão de Orçamento e Finanças, Jorge Neto, a ser peremptório: “quando as questões da aplicação da lei no tempo não são claras, suscita perplexidade nos agentes económicos, traduzindo-se no recurso aos tribunais para dirimir os litígios”. Antecipa, por isso, que este Orçamento, ao não produzir efeitos desde o início do ano, “é susceptível de virem a ocorrer uma série de processos de contra-ordenação, reclamações e impugnações”.

Jorge Neto considera que esta questão “deve ser objecto de esclarecimento”, num momento em que também os trabalhadores dos impostos a apelidam de “complexa”. Marcelo Castro, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), avalia a aplicação das medidas fiscais do OE/2010 apenas a partir de 29 de Abril: “Vai obrigar a um esforço acrescido dos trabalhadores dos impostos no apuramento da verdade tributária, para o qual nós estamos preparados”. O STI aguarda, no entanto, que surjam “instruções administrativas para tirar dúvidas” da aplicação no tempo das leis fiscais deste Orçamento. “Esta questão vem complexificar o sistema, que é algo que não deve ser pretendido pelo nosso legislador. Quanto mais complexo, menos compreendido e mais difícil será de cumprir”, conclui Marcelo Castro.

Emenda ou normas transitórias?
Outros fiscalistas consideram, porém, que a confusão poderia ser evitada com a previsão de normas transitórias no Orçamento. É o caso de Rogério M. Fernandes Ferreira que defende que “o legislador devia ter estabelecido, clara e circunstanciadamente, um regime transitório”. Trata-se, diz, de clarificar “o momento da entrada em vigor e da concreta aplicação de cada uma das normas fiscais que suscitam dúvidas sobre os termos do mesmo”. Objectivo: “evitar a incerteza e a insegurança decorrente da entrada em vigor no meio de um exercício orçamental, com alterações tão relevantes e desfavoráveis ao contribuinte”, frisa.

A falta de clareza na aplicação do tempo das leis fiscais levam o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia a considerar que “é um absurdo ter um Orçamento para o ano todo e só se aplicar em oito meses”. Este responsável defende mesmo que “será necessário a Assembleia da República fazer uma emenda da Lei do Orçamento, explicando que se aplica desde 1 de Janeiro”.

Já Jorge Miranda afirma que “no plano estritamente jurídico não pode haver retroactividade das leis fiscais”, à semelhança de Fernando Pacheco, ex-secretário de Estado do Orçamento, ao defender que “os impostos não podem ser cobrados sem estarem aprovados”. No entanto, este responsável não esconde que a aplicação de regras fiscais diferentes ao longo de 2010, se traduzirá “num trabalho louco para as empresas e máquina fiscal”.

Críticas partilhadas por Nuno Sampayo Ribeiro, antigo consultor técnico da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO): “O presente caso tem o mérito de confirmar como indiscutível a necessidade de repor a confiança e modernizar o processo orçamental português”. Enquanto o fiscalista Diogo Ortigão Ramos remata que “esta situação é apenas mais um sinal da trapalhada legislativa que vem marcando a vida fiscal nos últimos tempos”.

Incoerência política
Com as alterações fiscais a só produzirem a partir de 29 de Abril, o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Carlos Santos considera que esta é “uma posição que não é coerente” com a solução adoptada no PEC2, com a adopção de medidas como a sobretaxa do IRS, que acaba por ser retroactiva ao englobar os rendimentos do ano inteiro. “Num caso diz-se que se aplica para a frente, a partir da entrada em vigor do orçamento. E no caso das novas taxas de IRS, diz-se que se aplicam para trás”, conclui.

Opinião partilhada por Tiago Caiado Guerreiro: “Há uma grande desorientação, por um lado, no OE/2010 diz-se que as alterações fiscais logo só podem ser aplicadas para o futuro em todos impostos. E no novo PEC acaba por se aplicar a sobre taxa do IRS retroactivamente”.

Algumas medidas não se aplicam nos quatro primeiros meses
A tributação dos bónus do sector financeiro e das remunerações variáveis pagas por empresas são algumas das alterações fiscais que, tudo indica, não se aplicarão entre 1 de Janeiro e 28 de Abril. Em causa está a nova taxa autónoma de 50%, em sede de IRC, sobre os bónus pagos pela banca em 2010, quando estas superem 25% da remuneração variável ou sejam superiores a 27.500€. Medida figura no Orçamento de Estado deste ano, mas caso os bónus tenham sido pagos antes de 29 de Abril, não podem ser sujeitos à nova taxa.

As taxas agravadas alastram-se a todas as empresas que deveria ter este ano uma taxa autónoma de 35%, em sede de IRC, sempre que superem 25% da remuneração variável ou os 27.500€. O pagamento destas remunerações a gestores, administradores ou gerentes, naquele período, escapa, no entanto, à nova taxa de imposto.

Segundo o OE/2010, serão ainda taxadas autonomamente a 35% as indemnizações ou compensações pagas aos gestores, administradores e gerentes que cessem funções antes de decorrido o período contratual. Mas caso estas indemnizações/compensações tenham sido pagas até 28 de Abril, não deverá ser aplicada a nova taxa.

A indefinição atinge também os benefícios e deduções fiscais. Com o OE/2010, a aquisição de computadores e material informático deixa de beneficiar de incentivos fiscais. A revogação desta dedução à colecta do IRS só deverá ter efeitos, após 29 de Abril. Ou seja, deveria poder ser feita esta dedução – de 50% dos montantes despendidos até ao limite de 250 euros – até à entrada em vigor do Orçamento de Estado deste ano.
Colocam-se ainda dúvidas quanto à dedução até 30% de encargos com equipamentos e obras, realizados antes de 29 de Abril, para a melhoria das condições térmicas das casas (vidros duplos ou o isolamento de telhados). Ou equipamentos de energias renováveis. Alguns fiscalistas dizem que configuram alterações favoráveis ao contribuinte, sendo legítima a aplicação retroactiva.

Três períodos de tributação
O fiscalista Tiago Caiado Guerreiro alerta: “ficamos com três períodos de tributação: entre 1 de Janeiro e 28 de Abril (antes da entrada em vigor do Orçamento de Estado de 2010), outro de 29 de Abril a 31 de Maio (depois da entrada em vigor) e outro que contempla as novas sobre taxas de IRS, a partir de 1 de Junho”.

Rogério M. Fernandes Ferreira considera, porém, que a actualização (aumento) dos escalões de rendimentos, é uma das alterações favoráveis ao contribuinte previstas na Lei do OE/2010. Defende, por isso, que “é legítima a sua aplicação retroactiva, não existindo obstáculo legal à sua entrada em vigor logo no dia 1 de Janeiro de 2010″.

Este fiscalista conclui que, neste caso, “não se afectará, de forma inadmissível, ou intolerável, os direitos e expectativas legitimamente fundados”.
“TUDO ME SUSCITA PERPLEXIDADE A NÍVEL FISCAL”

Especialista, Henrique Nunes defende que medidas fiscais com impacto em IRC e IRS, previstas Orçamento de 2010, devem produzir efeitos a 1 de Janeiro. Alerta ainda que pessoas e empresas estão “cansadas de tanta instabilidade”.

Entre 1 de Janeiro e 28 de Abril, qual é o direito que se devia aplicar às situações fiscais da Lei do Orçamento de Estado de 2010?
Do ponto de vista fiscal, deverá aplicar-se o OE/2010 a todas as situações que tenham impacto em IRS/IRC mesmo que ocorridas anteriormente, porque o facto tributário ocorre a 31 de Dezembro. Por outro lado, nas situações sujeitas a retenções liberatórias dado o carácter imediato do facto tributário, as alterações deveriam aplicar-se apenas a rendimentos obtidos _a partir desta data.

E como fica a revogação das isenções fiscais para as mais valias mobiliárias detidas há mais de 12 meses?
A questão é, como sabe, discutível, porquanto tal representa formalmente um caso de retroactividade fraca. Pois, _a forte só surge se a alteração for produzida após a verificação plena do facto tributário (o que dada a anualidade do IRS ainda não ocorreu).

Como avalia a falta de clareza na aplicação do tempo de algumas medidas fiscais?
Neste momento, tudo me suscita perplexidade a nível fiscal… Já foi publicado o OE, mas logo veio o PEC (cujas alterações ainda não foram totalmente aprovadas) e agora novas medidas a serem anunciadas, tudo sem coerência _e que causará uma instabilidade sem precedentes… Resultado: _o investimento estrangeiro em Portugal praticamente desapareceu. Mas também muitas empresas (sobretudo PME) vivem com a “corda na garganta” devido a problemas de tesouraria e de acesso ao crédito.

in Diário Económico