Domingo, 24 de Novembro de 2024 Adrego & Associados – Consultores de Gestão

Impostos e Constituição

A comunicação social tem-se referido a um imposto “adicional” e “extraordinário”, a uma “sobretaxa” de IRS, a cobrar a partir de 1 de Junho de 2010 e que incidirá, para evitar os problemas da retroactividade, apenas sobre parte do rendimento auferido em 2010, ou seja, na “proporção” do período da sua vigência anual (de Junho a Dezembro). Adicionalmente, refere-se que as Finanças estabelecerão um “padrão administrativo” para efectuar este cálculo. Esclarecendo ainda que essa tributação “adicional” em sede de IRS será de 1 % e de 1,5 % sobre as “taxas gerais” desse imposto aplicáveis, respectivamente, até ao 3.o escalão e a partir do 4.o escalão de rendimentos. Por último, tem indicado que incidindo formalmente sobre todo o rendimento anual, se procederá a uma “ponderação” das novas taxas de imposto, para que o agravamento seja apenas sobre 7/12 do rendimento auferido entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 2010. Também a nova tributação sobre mais–valias mobiliárias e, bem assim, a nova tabela geral de taxas do IRS para 2010, contendo a nova taxa marginal máxima de 45%, se aplicará, segundo informa, a todos os rendimentos auferidos desde Janeiro de 2010.

No que respeita à aplicação da nova tabela geral de taxas, já aprovada, com taxa marginal máxima de 45%, haverá certamente quem continue a sustentar que há retroactividade (dita) de terceiro grau, própria e autêntica, e que tal aplicação será portanto inconstitucional, quando e se aplicável aos rendimentos auferidos antes da entrada em vigor da nova lei e antes dessa nova tabela geral. A Lei Geral Tributária (LGT), infelizmente, não obsta que lei posterior a revogue, ou disponha em contrário, ainda que determine que a solução passa, clara e idealmente, por se dividir nestes casos o período anual em duas partes, aplicando as novas taxas, mais gravosas, aos rendimentos, pagos ou postos à disposição, apenas para depois da sua entrada em vigor. Resta saber se essa LGT – à qual a Constituição, em 1997, não chegou a atribuir valor reforçado – não se limita afinal a reproduzir o que resulta, a partir desse ano, da mesma Constituição, caso em que haverá retroactividade da lei fiscal, e proibida, não propriamente pela primeira, mas pela Constituição, que se limita a reproduzir e esclarecer.

Poderá, porém, querer entender-se que esse facto tributário, (dito) complexo e de formação sucessiva se inicia a partir de 1 de Janeiro, só se verifica no rigor plenamente no final do ano, a 31 de Dezembro, o que sempre será mais fácil de sustentar no âmbito do IRC do que no do IRS, dado existir naquele, mas não neste, disposição expressa que remete a sua verificação para o final do período de tributação. E haverá assim quem também sustente portanto que não há formalmente tal retroactividade, mas sim mera “retrospectividade” (expectativas que a Constituição não tutela, ao nível da proibição da retroactividade, por não haver direito à imutabilidade da lei fiscal). Mas neste caso então a medida terá que passar ainda pelo crivo do princípio constitucional da segurança, ínsito no do estado de direito democrático, tendo aqui de se verificar se se trata afinal de medida constitucionalmente “tolerável”, o que o governo procurará justificar, certamente, com a natureza “extraordinária” e “temporária” das novas taxas e com as razões de “excepcionalidade” que têm vindo a ser invocadas, tal como nos anos 80. Mas esta justificação será também, aliás, certamente, bem mais difícil à luz dessa proibição da retroactividade da lei fiscal, hoje prevista expressamente na Constituição – ao contrário do que seria, como ora se vê, desejável -, pois, após a revisão constitucional de 1997, esse crivo passa só e após o da não retroactividade em matéria de elementos essenciais dos impostos, onde se inclui, além da criação de impostos (novos, como os adicionais, os adicionamentos, ou as sobretaxas, se o forem), os agravamentos das respectivas taxas.

E se se tratar, como se pode aventar, não de um “adicional”, em sentido técnico (que incidiria sobre a colecta do IRS), mas de verdadeira “sobretaxa”, como aliás se anuncia – ou seja, afinal, de um verdadeiro adicionamento (sobre a matéria tributável, como a derrama no IRC), ao IRS, enquanto imposto principal, temporário e extraordinário – que é afinal a natureza própria e específica de uma “sobretaxa” -, e com uma fórmula de cálculo que se adivinha susceptível de problemas bem mais complexos do que a mera regra de três simples que foi anunciada -, então há que convocar ainda a Constituição. E, em primeiro lugar, ainda a não retroactividade fiscal. Bastará pensar, para tanto, nas situações de rendimentos exclusivamente auferidos entre 1 de Janeiro e 31 de Maio, em momento, portanto, em que o contribuinte não podia contar com tal “agravamento”, caso em que a incidência das novas taxas, de 1% e de 1,5%, apenas sobre 7/12 dos rendimentos auferidos a partir de 1 de Janeiro, não obstará à retroactividade, mesmo a partir de Junho, e que era suposto evitar.

Suscitar-se-ão ainda outros problemas, a analisar com cuidado, de natureza bem diferente, como o da própria unicidade do imposto, pois segundo a Constituição o imposto sobre o rendimento pessoal (IRS) deve ser um só (único), e não também uma “sobretaxa”, enquanto adicionamento ou novo imposto, acessório do principal, mesmo que mantenha idêntica designação. E outros problemas se suscitarão, certamente, como eventualmente o da tipicidade qualitativa da receita da “sobretaxa”, a qual exigirá uma alteração orçamental específica – cuja iniciativa e aprovação serão então, respectivamente, da exclusiva competência do governo e da Assembleia da República -, para que a mesma, sendo nova ou diferente da relativa ao imposto principal, possa afinal ser cobrada, como se pretende, ainda durante o ano de 2010.

É caso para dizer, hoje, afinal ainda bem que temos Constituição.

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