Uma nova idolatria
A era do “capitalismo à Jack Welch” (conhecido CEO da General Electric) pode estar à beira do fim. Foi esta a previsão de Richard Lambert, o dirigente máximo da Confederação da Indústria Britânica (CBI), num discurso proferido no mês passado. Quando dirigia a GE (General Electric), “Jack Neutrão” (a alcunha tem a ver com a sua prontidão em despedir pessoal) era visto como a encarnação da ideia de que o único objectivo de qualquer empresa deveria ser conseguir o máximo de lucros para os accionistas. Esta ideia dominou o mundo empresarial americano nos últimos 25 anos e estava a espalhar-se rapidamente por todo o mundo, até rebentar a crise financeira, que pôs em causa a sensatez de tal conceito. Até Jack Welsh manifestou algumas dúvidas. “Aparentemente, enriquecer os accionistas é a ideia mais estúpida deste mundo”, declarou, no ano passado.
Num artigo publicado numa das últimas edições da “Harvard Business Review”, Roger Martin, reitor da Escola de Gestão Rotman da Universidade de Toronto, refuta a promoção daquilo que designa por “a premissa tragicamente errada” de que as empresas devem concentrar-se em maximizar o enriquecimento dos accionistas e defende que “é tempo de abandonarmos essa ideia”. A obsessão com o enriquecimento dos accionistas começou em 1976, diz ainda, quando os economistas Michael Jensen e William Meckling publicaram um artigo intitulado “Theory of the Firm: Managerial Behaviour, Agency Costs and Ownership Structure” (Teoria da empresa: comportamento gestionário, custos de representação e estrutura de propriedade) em que defendiam que os donos de empresas eram pouco tidos em consideração pelos gestores profissionais. Sendo o artigo académico sobre gestão até agora mais citado, inspirou um movimento aparentemente irresistível para obrigar os gestores a concentrarem-se no enriquecimento dos accionistas. Os convertidos a esta crença tinham pouco tempo para as outras “partes interessadas” [stakeholders, no jargão da gestão em inglês] – clientes, funcionários, fornecedores, sociedade em geral e por aí fora. Os fanáticos americanos e britânicos da maximização do lucro encaravam com um desdém especial o “capitalismo das partes interessadas” praticado na Europa continental.
Agora, defende Roger Martin, o enriquecimento dos accionistas deve dar lugar ao “capitalismo virado para o cliente”, no qual as empresas “deverão, antes de mais, maximizar a satisfação do cliente”. Esta ideia está a ganhar adeptos. Paul Polman, que no ano passado assumiu a chefia da Unilever, uma das maiores empresas produtoras de bens de consumo, disse recentemente ao “Financial Times”: “Para ser franco, não trabalho para os accionistas; trabalho para o consumidor, o cliente… Não me pauto e não norteio este modelo de gestão pela realização do enriquecimento dos accionistas.”
Também não são apenas os clientes que deverão vir a ser beneficiados pelo contra-ataque em relação ao culto do enriquecimento dos accionistas. Richard Lambert refere que um inquérito recente aos membros da CBI revelou que o maior anseio era que “venha a desenvolver-se uma abordagem mais colaborativa com os vários grupos de interessados”, incluindo os fornecedores e as instituições que formam os colaboradores. E o próximo livro de Vineet Nayar, administrador-executivo da HCL Technologies, uma empresa indiana de outsourcing de gestão de processos de negócios, em rápido crescimento, assume uma posição muito diferente da de Martin, como está patente no título: “Employees First, Customers Second” (Primeiro os empregados, depois os clientes).
Ainda assim, terá o modelo do enriquecimento dos accionistas falhado realmente? O descalabro financeiro minou sem dúvida duas das ideias principais inspiradas por Jensen e Meckling: que o salário dos gestores seniores deve estar estreitamente ligado ao preço das acções da respectiva empresa; e que as participações privadas, suportadas por montanhas de dívidas, ficariam melhor se conseguissem que os gestores maximizassem o lucro do que o tentassem nos mercados de títulos públicos. Durante a última década, as bolhas dos mercados bolsistas e, mais tarde, dos mercados de dívida das empresas revelaram falhas graves em ambos os conceitos ou, pelo menos, na forma como foram aplicados.
Escusado será dizer que o preço das acções de uma empresa num determinado dia é um indicador muito pouco fiável no que se refere ao enriquecimento dos accionistas a longo prazo. No entanto, é normal os patrões terem o seu salário associado a movimentos de curto prazo do preço das acções, o que os encoraja a tomar medidas que façam subir rapidamente esse preço, em vez de maximizarem o enriquecimento dos accionistas a longo prazo (quando provavelmente já terão saído da empresa). Do mesmo modo, as sociedades de participações privadas adquiriram demasiados títulos de dívida durante a bolha do crédito, quando estes estavam disponíveis em condições absurdamente vantajosas, o que teve como resultado terem agora de efectuar cortes que desvalorizam muitas das empresas da sua carteira.
De certo modo, os actuais apuros do Goldman Sachs exemplificam o problema referido. Este banco de investimento optou por maximizar o enriquecimento dos accionistas, quando se tornou uma empresa cotada, em 1999. Embora esta instituição insista em que não vive uma situação desesperada, personalidades seniores da sua anterior encarnação como sociedade, quando lutava naturalmente pelos interesses a longo prazo dos seus empregados (os sócios), dizem que deveriam ter sido muito mais cautelosos, nesses tempos, em relação a operações que davam lucros rápidos mas que envolviam o risco de perda de clientes. Mas, como sublinha Richard Lambert, “não foram só os bancos que sentiram o sangue subir-lhes à cabeça. Durante alguns anos, um número considerável de empresas de outros ramos tendeu a esforçar-se praticamente tanto por gerir os seus balanços gerais como por aliciar clientes”. Nesta perspectiva, “se nos concentrarmos em enriquecer os accionistas a curto prazo, pomos em risco as relações que determinarão o nosso sucesso a mais longo prazo”.
Isto não significa, porém, que a veneração do enriquecimento dos accionistas esteja errada e deva ser substituída pelo culto de uma qualquer outra divindade dos negócios. Muitos dos que pregam a reverência por outras partes interessadas admitem que, em geral, a primeira e a segunda não se excluem mutuamente e podem mesmo reforçar-se uma à outra. Roger Martin, por exemplo, acredita que o “maior enriquecimento dos accionistas é um dos subprodutos de uma centralização na satisfação do cliente”. Do mesmo modo, na indústria tecnológica da Índia, onde reter o pessoal com talento talvez seja a tarefa mais árdua dos gestores, a devoção de Vineet Nayar pelos empregados, que afirma ter ajudado a aumentar receitas e lucros, pode ser a melhor maneira de maximizar o enriquecimento dos accionistas a longo prazo.
Ou seja, o problema não é colocar a tónica no enriquecimento dos accionistas mas o recurso a aumentos a curto prazo do preço das acções de uma empresa, em substituição daquele. Ironicamente, foram os próprios accionistas que ajudaram a difundir esta confusão. Juntamente com os defensores dos fundos especulativos, muitos investidores institucionais idolatraram os lucros a curto prazo e a subida dos preços das acções, de preferência a arrastar gestores recalcitrantes para discussões sobre governação empresarial ou salários dos executivos.
Dar mais poder aos accionistas para influenciar a gestão (em especial na América) e incentivá-los a usar esse poder talvez os levasse – e aos gestores que eles empregam – a adoptar uma visão de mais longo prazo. Na América, o Congresso está a analisar diversas medidas destinadas a reforçar a posição dos accionistas em detrimento da dos gestores. No Reino Unido, o Financial Reporting Council (organismo independente que supervisiona as actividades das empresas) propôs um “código de administração” para estimular os investidores institucionais. “Isto é uma falsa guerra entre capitalismo dos accionistas e capitalismo das partes interessadas, visto que nunca experimentámos realmente o capitalismo dos accionistas”, diz Anne Simpson, que supervisiona a governação do CalPERS, o maior fundo público de pensões da América. “Em vez de desistirmos do enriquecimento dos accionistas, tentemos a sério criar o capitalismo dos accionistas.”