“Estava em crer que se iniciaria a tributação das mais-valias no OE”
O coordenador do grupo de trabalho para o estudo da política fiscal, encomendado por este Governo e que foi apresentado em Outubro, faz a avaliação do orçamento de Estado 2010, onde salienta algumas medidas de desagravamento e de simplificação para as famílias e aplaude a taxa autónoma de 35% sobre as remunerações variáveis dos gestores.
António Carlos Santos diz que esperava o agravamento da tributação das mais-valias bolsistas no OE e considera que a medida que veio consagrada no PEC deve ser aplicada no curto prazo.
O ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de Sousa Franco antecipa ainda que no âmbito do PEC poderá ser necessário “um cenário mais exigente”, em especial do lado da redução da despesa corrente e da contenção da despesa por adiamento ou anulação de certos projectos de investimento “menos urgentes ou justificáveis”.
Qual é a avaliação que faz do Orçamento de Estado para 2010 do ponto de vista fiscal?
Não são muitas as medidas fiscais do Orçamento para 2010. Este é um ponto positivo, sobretudo se representar uma opção e não for o resultado de um contexto político complexo. A sua apreciação concreta depende da posição do observador. Do ponto de vista das famílias, o Orçamento consagra, de facto, algumas medidas de desagravamento ou de simplificação, tais como a alteração (e alargamento) do regime simplificado da tributação, com eliminação de mínimos em caso de reporte de prejuízos, a alteração na forma de tributação dos rendimentos dos actos isolados, a consagração de deduções fiscais com a aquisição de bens protectores do ambiente ou uma melhor distribuição dos prazos de entrega das declarações de IRS. Creio que para além das actualizações normais de escalões de rendimento e dos limites das deduções à colecta por encargos e de pequenas correcções, poderá dizer-se que actualização é maior quando referenciada à retribuição mínima mensal (que subiu de € 450,00 para € 475,00) e, sobretudo, no caso da dedução específica da categoria A e dos encargos com lares, pois aí essa indexação não tem qualquer travão. De resto, o Orçamento prolonga algumas medidas conjunturais contidas no Orçamento anterior e outras previstas no chamado plano anti-crise (sendo certo que a fiscalidade, como a própria Comissão reconhece no seu Plano para o Relançamento da Economia Europeia para os anos 2009-2010, não é o vector indicado para o combate à crise).
Um Orçamento sem grandes novidades fiscais…
Mais importantes são algumas medidas que assumem natureza estrutural como a unificação das taxas liberatórias do IRS (ainda que com a limitação da não tributação generalizada das mais-valias mobiliárias) que aponta para a consagração de um sistema dual de tributação, o fim do regime simplificado do IRC, a redução de certos custos de contexto em sede de imposto de selo e o reforço de algumas garantias dos contribuintes, nomeadamente no que respeita à quebra dos automatismos das penhoras. Uma parte da reestruturação do sistema fiscal é deixada para autorizações legislativas. Umas importantes, como a relativa à harmonização dos contenciosos administrativo e tributário (que poderia ter ido mais longe, acolhendo simultaneamente muitas propostas de simplificação do Grupo de Política Fiscal) e a da criação de um regime geral de taxas da Administração do Estado. Outra talvez demasiado generosa como a do regime da arbitragem fiscal. Há que assegurar que a arbitragem não seja admissível apenas para litígios de certo valor, que se processe a uma escolha isenta de árbitros cuja composição não deve ser apropriada por uma determinada classe profissional e que se clarifique a relação com o poder judicial. Talvez se devesse começar por um projecto-piloto. Há, no entanto, uma autorização incompreensível em sede de IVA que visa consagrar regras já existentes. O resto não é – e bem – assumido no Orçamento.
Foi considerado um Orçamento de desagravamento da carga fiscal das famílias com o alargamento de algumas deduções que dependem do salário mínimo nacional, que aumentou 5,5%, tais como despesas com educação, encargos com lares e deduções específicas por sujeito passivo. Mas este sinal dado no OE não acabou por ser anulado com a redução das deduções dos benefícios fiscais prevista no PEC?
Esse desagravamento existe e vem na sequência da adopção pelo Governo anterior, em sintonia com muitos outros Estados da União Europeia, de algumas medidas anti-crise que, no conjunto, terão contribuído para um aumento da despesa fiscal, visto, como temporário. O que ocorre, porém, é que a União Europeia decidiu que a recessão técnica já teria acabado (não, obviamente a crise, que essa continua e ninguém pode afirmar com certeza por quanto tempo) e que o fim da recessão técnica seria suficiente para aplicar uma estratégia de saída de crise, com retorno à consolidação orçamental, isto é o regresso ao Pacto de Estabilidade e Crescimento, na versão flexibilizada de 2005. Por outras palavras: falar-se de keynesianismo revelou-se algo de exagerado, o que se verificou foi um curto interregno nas políticas neoliberais que procuram sustentar o euro. Note-se, aliás, que continuam por desenvolver as propostas da União relativas ao reforço da supervisão financeira, à criação de uma agência de rating europeia (pois há que relembrá-lo, as agências existentes perderam muita da sua credibilidade por não preverem ou não terem sido capazes de prever a actual crise, apesar de esta vir na sequência de diversas outras e de alguns economistas ou financeiros, como Roubini, Schiller, Soros, Stiglitz, Krugman, a terem previsto) e de um Fundo Monetário Europeu. Se a isso acrescentarmos a pressão dos meios financeiros, os que mais beneficiaram com as mediadas anti-crise e das referidas agência de rating, que não são propriamente entidades neutras e desinteressadas, poderemos perceber melhor voltar o contexto em que se inserem as medidas anunciadas no Programa de Estabilidade e Crescimento português.
Com medidas penalizadoras…
Algumas destas medidas são penalizadoras, como por exemplo as que resultam da indexação que nele é feita para o Indexante de Apoios Sociais, muito inferior à retribuição mensal mínima garantida, ou da redução, cada vez maior da dedução específica dos pensionistas e reformados, que vai muito para além do fundamento que tem sido invocado para o efeito, o da sua aproximação à dedução específica e à tributação dos trabalhadores por conta de outrem. De facto, pelo menos em certos casos, muitos milhares de pensionistas teriam menor carga fiscal se passassem a ser tributados pelas regras da categoria A. Em termos gerais, pode-se tentar contrariar esta visão mais crítica avançando com dois argumentos. Primeiro, a redução de benefícios prevista no PEC português tenderia a ser aplicada a estratos socioeconómicos de mais elevado poder aquisitivo, tendo um alcance diferente da elevação geral dos limites das deduções. Não haveria assim uma estrita comparabilidade entre as duas coisas. Segundo, os benefícios do Orçamento para 2010 manter-se-ão até que deixem de vigorar. O Programa de Estabilidade, como se sabe, não é uma lei, é um enunciado político que terá de se traduzir em leis. E, recorde-se, esse é um aspecto não garantido no plano político.
Neste contexto, considera que são as medidas de simplificação e de reforço de garantias que mais se destacam pela positiva no OE para os contribuintes singulares?
A medida estrutural mais importante é, quanto a mim, a da dualização do IRS, com uniformização das taxas liberatórias e das taxas autónomas em 20%. Não será a medida ideal (pessoalmente sou adepto do modelo compreensivo, com progressividade), mas é, no actual contexto de concorrência fiscal exacerbada, como o mostram as experiências nórdica e espanhola, a medida possível (devendo obviamente englobar as mais-valias mobiliárias). Ela contribuirá para uma redução de formas de elisão fiscal. Contribuirá ainda para uma simplificação do sistema, tal como, em menor grau, a reforma do regime simplificado em IRS e a melhoria das vias de comunicação entre o fisco e os contribuintes. As medidas relacionadas com o reforço de garantias, em especial a clarificação (tardia) da questão da compensação de créditos no Código de Procedimento e Processo Tributário e a garantia da efectivação das citações, são importantes, pois nos últimos anos tem-se verificado um progressivo desequilíbrio na relação fisco – contribuinte, tanto mais incompreensível quanto os meios informáticos de que o fisco dispõe têm tido um importante incremento. Mas muitas medidas avançadas pelo subgrupo do Grupo de Política Fiscal coordenado pelo Dr. Rogério Manuel Fernandes Ferreira ficaram por introduzir.
Uma das medidas do OE com vista a esse reforço de garantias é o alargamento do prazo de pagamento de dívidas a prestações de 60 para 120 prestações, já sugerida pelo grupo de peritos que coordenou para o estudo da política fiscal. É uma medida vista como um apoio excepcional às empresas em tempo de crise que veio para ficar. Tem ideia do universo de contribuintes que poderá abranger?
Talvez não seja propriamente uma medida de reforço de garantias, mas antes uma medida de apoio à liquidez das empresas e à salvaguarda da receita, evitando situações de mais gravosas. O universo potencial será aparentemente o da lista dos devedores ao fisco ou dos contribuintes sujeitos a processos de execução fiscal. Se atendermos à última lista de devedores que a DGCI publicou, e somente para dívidas do primeiro escalão até € 25 000,00 o número de relapsos, pessoas singulares é de cerca de 7 500. Por outro lado, quanto às empresas, o número das que constam do 1º escalão até € 50 000,00 é de 4 200, pelo que, no seu todo, esta medida poderia vir a beneficiar mais de 10 000 empresas. No entanto, tudo indica que o universo real será, para já, muito mais reduzido, não ultrapassando poucas centenas, pois nem todos os contribuintes satisfarão as condições exigidas. Importante é também sublinhar que, com esta alteração, os prazos de pagamento em prestações ao Fisco aproximam-se dos do regime da Segurança Social, o que poderá facilitar a gestão dos procedimentos extrajudiciais de conciliação. Uma outra questão é a de saber como se concilia o limite máximo de 8 anos para a contagem de juros de mora com o máximo dos 10 anos de prestações agora previsto.
“TRIBUTAMOS OS REMEDIADOS MAIS DO QUE DEVERÍAMOS”
Voltando à limitação das deduções e dos benefícios fiscais que afectará 1,1 milhões de agregados familiares, logo a partir do terceiro escalão para rendimentos superiores a 946 euros/mês. Não são estas famílias as mais prejudicadas pelo PEC?
Para analisar as incidências da fiscalidade nas famílias não podemos pensar apenas no IRS. Há que ter em conta o conjunto da fiscalidade e da parafiscalidade, cujo peso no orçamento das famílias é muito grande, mas também a dimensão da economia informal que é um obstáculo à definição de uma carga fiscal mais amigável. A avaliar por um recente estudo da Universidade Católica do Porto sobre a economia informal, que distorce a concorrência entre cumpridores e não cumpridores, pode dizer-se que, de há anos a esta parte, os rendimentos fora do sistema rondam cerca de 22% do PIB, números que alguns consideram optimistas. Obviamente estes rendimentos não dizem, essencialmente, respeito à categoria A (embora haja a questão dos fringe benefits), mas sobretudo às categorias B, F e G e à erosão das bases tributáveis do IRC. Sem esquecer os esquemas de fuga ao IVA e aos impostos especiais de consumo, impostos estes que mereceriam uma redobrada atenção em sede de fiscalização.
Vamos nos cingir ao IRS.
Houve a preocupação de deixar de fora de qualquer agravamento os dois primeiros escalões e de atingir, de forma progressiva os escalões acima do terceiro. A média de agravamento do IRS para o terceiro escalão é estimada em 100 euros, enquanto para o último, o dos 42%, é estimada em 700 euros. Numa conjuntura de crise e económica e das finanças públicas, o efeito das medidas deve ser desenhado para reduzir as deduções das pessoas com mais elevados rendimentos. Parece compreensível que necessitando o Estado de recuperar receita, os sacrifícios ao nível da tributação individual tenham essa lógica e sejam inevitáveis. É, no entanto, claro que o valor marginal do dinheiro não é o mesmo para os contribuintes do terceiro e do sétimo escalões e que os escalões entre nós assentam em rendimentos anuais muito baixos. Tributamos os remediados mais do que deveríamos.
Há seis meses, o Governo disse que a reforma dos benefícios fiscais seria a favor da classe média e que só seriam penalizados os agregados familiares com rendimentos médios mensais acima de cinco mil euros. Nem uma nem outra condição se verificaram. Não teria sido mais justo um aumento do IVA?
Sinceramente não me recordo de ter visto ou ouvido essa posição do Governo. Mas desde um célebre diálogo entre Colbert e Mazarin no tempo de Luís XIV se sabe que os impostos modernos têm quase sempre recaído sobre os estratos médios da sociedade. Creio que o problema se deve pôr nestes termos: a haver necessidade de arrecadar mais impostos para cobertura do défice – e a maioria dos analistas diz que isso é inevitável – qual será a melhor estratégia: optar pela tributação indirecta, mais indolor, mas mais regressiva, optar pela subida das taxas dos impostos directos ou, o que não é, no plano dos princípios a mesma coisa, reduzir a despesa fiscal, ou criar uma tributação ad hoc para o efeito (como fez a Itália aquando da adesão ao euro). Pessoalmente não sou favorável a alterações dos impostos estruturais do sistema fiscal por razões conjunturais. Mas a ter que ser, ao contrário das correntes económicas dominantes, creio que o aumento do IVA, embora se trate de uma medida mais simples e com impacto quase imediato, seria de afastar pois os efeitos redistributivos seriam diferentes.
Porquê?
O IVA é, por definição um imposto regressivo. Por isso, só quem tenha desistido de utilizar a fiscalidade como instrumento de redistribuição, um imperativo constitucional, apostará nessa solução. Basta recordar que, não vai há muito tempo, um economista condecorado pelo actual Presidente da República, o Prof. Richard Eckaus, dizia que o nosso sistema fiscal sofria de um défice de efectiva progressividade. A opção pelo IRS deveria assentar, quanto a mim, dois pressupostos: distinguir o que são reais incentivos fiscais dos incentivos que são ligados às funções do Estado social e alargar a base tributária procurando incluir no sistema rendimentos que até agora estão, por evasão ou por dificuldades administrativas, fora dele, apertando sobretudo os cruzamentos de informação, hoje possíveis, e introduzindo um novo regime de tributação dos pequenos contribuintes em IVA. No essencial, nesta matéria, tenho uma posição que não será talvez muito diferente daquela que Freitas do Amaral defendeu em recente entrevista à revista Visão.
Com a fixação dos tectos às deduções dos benefícios fiscais, há uma poupança fiscal de 400 milhões de euros. Do ponto de vista da receita fiscal o aumento do IVA, por exemplo, em um ponto percentual não seria mais eficaz?
Como disse, o aumento do IVA seria, porventura, mais simples de se concretizar. A subida de 1 % da taxa normal reportada a 2009 valeria cerca de 350 milhões de euros, dependendo o valor final do IVA arrecadado do nível de evasão e fraude que um aumento de taxa certamente propiciaria. Basta recordar que nas experiências anteriores de subidas de taxas do IVA, a receita foi normalmente inferior ao valor estimado. No entanto, ao actuar-se no IRS, e prevendo-se relativa estabilidade dos rendimentos, especialmente nas categorias A e H, o efeito sobre a receita será porventura mais determinado, embora menos indolor. Acresce que uma estimativa de arrecadação do lado da tributação directa não advém apenas da fixação de tectos às deduções à colecta e benefícios fiscais, mas de outras medidas como redução da dedução específica de IRS para pensões mais elevadas, do alargamento e controlo da base contributiva da Segurança Social e da tributação extraordinária em IRS à taxa de 45%, bem como da (de novo) prometida sujeição das mais-valias mobiliárias. Mesmo que fosse mais simples, as anteriores subidas de taxas de IVA permitem pôr em dúvida que essa solução fosse a mais eficaz. Mas mais justa não seria certamente. Há ainda que ter em conta outro factor. A subida em Espanha da taxa do IVA contribuirá para diminuir a evasão e a elisão fiscal relativa a este imposto não apenas em relação a transacções transfronteiriças, mas também relativamente a certas actividades que tiram fraudulentamente partido das debilidades do regime das transacções intracomunitárias de bens.
Ainda no que toca ao IVA, o grupo de peritos defendeu a criação de um regime especial para as PME. Como funcionaria e qual a sua importância?
Esse regime substituiria os actuais regime dos pequenos contribuintes do artigo 53.º do Código do IVA que tem um elevadíssimo número de contribuintes, estimado em cerca de 40% do número total de contribuintes, a grande maioria dos quais aí se mantém por ocultação de operações tributáveis ou de subavaliação de preços e o actual regime dos pequenos retalhistas que tem um reduzidíssimo número de aderentes, inferior a 13 mil. Falhada que foi, no plano político, há uma dezena de anos atrás, a tentativa de sanear o cancro que o artigo 53.º representava e representa, pois é um dos principais alimentadores do mercado paralelo, urge resolver este problema definitivamente. O desenho do novo regime deverá ser estudado a partir das sugestões contidas no relatório do Grupo de Política Fiscal, sendo certo que deverá passar pela reavaliação dos contribuintes que estão no regime há anos e por uma concordância com o regime comunitário do IVA relativo às pequenas empresas. Mesmo que a receita que daí adviesse não fosse muito elevada, o essencial seria estancar uma das fontes legais do mercado paralelo.
Concorda que a tributação a 20% das mais-valias bolsistas obtidas com a venda de acções há mais de um ano, consagrada no PEC, deve ser aplicada em 2010?
Já o referi várias vezes: os argumentos que procuram adiar a sua entrada em vigor não são convincentes. O ambiente internacional mudou muito desde os anos 2000, a cooperação entre os Estados membros e Estados terceiros tem-se reforçado, o sigilo bancário na Suíça e em outros países já não é o que era, as experiências estrangeiras, como a britânica e a espanhola, não permitem dar crédito à ideia da fuga generalizada e, por fim, nada impede que a mediada fosse implantada por fases, com taxas crescentes em cada ano, cujo âmbito tivesse sido decidido rapidamente. Neste quadro, a medida pode e deve ser aplicada a prazo curto, evitando o Governo, com as suas indecisões, ser ultrapassado na definição da agenda política, coisa, aliás, que poderá ocorrer em outras áreas. Existem argumentos constitucionais nesse sentido, seria o fim de um paraíso fiscal interno, sustentado pelos restantes contribuintes, que pode configurar um auxílio indirecto a certas empresas e, por outro lado, não há hoje obstáculos procedimentais importantes à sua adopção.
O Ministro das Finanças chegou a defender a sua adopção quando houver estabilidade dos mercados financeiros…
Alguns dirão porventura que a actual e delicada situação dos mercados financeiros e da situação de liquidez do país justificaria algum adiamento da medida. Esse é o discurso ouvido há muitos anos. Pelo contrário, cremos que é em período de crise que será politicamente mais fácil a sua implantação. Não é justo exigirem-se sacrifícios à grande maioria da população e deixar de fora da tributação este tipo de rendimentos. A tributação das mais-valias relativas a activos mobiliários em 2010 poderia servir para dar um sinal de maior equidade do sistema fiscal, muito embora, de facto, as mais-valias não especulativas em 2010 possam não vir a ser muito significativas, o que aconselharia uma prudente previsão de arrecadação de receitas derivada desta medida. Questões ainda a considerar serão a de evitar-se eventuais problemas de aplicação retroactiva da lei e a de resolver a questão da sua aplicação em relação a não residentes.
O novo escalão de 45% é para aplicar aos rendimentos colectáveis de pessoas singulares superiores a 150 mil euros, obtidos em 2010. Face à não retroactividade das leis fiscais como se poderá conciliar a criação deste escalão com os rendimentos auferidos antes da entrada em vigor da nova taxa?
Em si mesma, a criação de um escalão temporário para rendimentos superiores a € 150 000,00, a tributar à taxa de 45%, é aceitável, embora, dado a elisão existente, vá abranger um reduzido número de contribuintes, signifique um pequeno acréscimo na arrecadação de receita e provavelmente não atinja os rendimentos que pretende atingir. No plano jurídico creio que a posição que salvaguardaria a questão da retroactividade (nesta matéria como em relação à tributação das mais-valias mobiliárias) seria a adopção de uma tributação em função do tempo decorrido a partir da entrada em vigor no ano de 2010, se assim vier a acontecer. Será administrativamente uma solução mais complexa, mas evita a questão da retroactividade, hoje expressamente proibida no plano constitucional.
PEC: “NÃO É IMPENSÁVEL SER NECESSÁRIO UM CENÁRIO MAIS EXIGENTE”
Face ao aumento da carga fiscal sentida no PEC, como avalia as medidas anunciadas no lado da despesa?
Como já dei a entender muito poderá ainda ser feito no plano da receita, nomeadamente no combate à evasão e à economia paralela. Alguns como a prevista emissão electrónica de recibos verdes ou a própria consolidação, no plano comunitário e nacional, da facturação electrónica poderão produzir efeitos importantes. Mas, na ausência de uma política integrada de reestruturação da Administração Fiscal, creio que deveria olhar-se com urgência para a DGITA e para os sistemas de informação pois eles serão uma das peças-chave de um combate sério à evasão fiscal e a excessiva complexidade do sistema bem como a não integração dos sistemas fiscal e aduaneiro nada ajudam neste sentido. Quanto à despesa, o PEC adia projectos, prevê medidas de contenção em várias rubricas (nomeadamente através da técnica dos tectos máximos) e reduções em outras, como em matéria de pessoal, de certas despesas de consumo intermédio e de despesas com juros. Só a prática dirá se será possível atingir os objectivos previstos (alguns muito penalizadores para estratos populacionais mais desfavorecidos), sem grandes convulsões políticas e sociais, sem que surja o perigo de desencadear situações de anomia. As medidas do lado da despesa procuram conciliar algo que é muito difícil, no quadro de um Plano de Estabilidade e Crescimento, muito mais atento à Estabilidade que ao Desenvolvimento, termo que prefiro. Pretendem contribuir para a redução do défice, com contidos impactos sociais.
O corte da despesa deveria ser maior?
Em teoria, seria fácil cortar a despesa de forma mais acentuada, mas o efeito sobre certas camadas sociais e o efeito sobre a procura agregada pode tornar esses cortes numa causa de agravamento do clima económico. De resto, é sabido que o congelamento de salários na Administração Pública é uma medida conjuntural e de curto prazo. É um exercício de navegação entre Scila e Caríbdis. Muito vai depender da execução do programa e da evolução, nos próximos meses, no tocante às reacções dos mercados e das organizações internacionais ao Programa de Estabilidade. Não é impensável ser necessário um cenário mais exigente quer no lado da redução da despesa, em especial da despesa corrente e da contenção de despesa por adiamento ou anulação de certos projectos de investimento menos urgentes ou justificáveis, quer do lado da arrecadação fiscal, apesar da significativa redução da despesa fiscal, uma forma de despesa como qualquer outra, que é apresentada como alternativa à subida de taxas de imposto. É certo que, desde há muito, largos sectores da sociedade queixam-se da complexidade e das distorções introduzidas pelo elevado número de excepções e de derrogações à tributação de residentes. Só que, em situações normais, essas reduções de benefícios deveriam ser acompanhadas de reduções de taxas, coisa complicada no actual contexto. Devo dizer ainda que sou favorável à introdução de limites à despesa fiscal (como a definição de um tecto global e de um tecto de crescimento relativamente ao PIB) a considerar em cada Orçamento. Seria uma forma de disciplinar a corrida aos benefícios que surge todos os anos e de obrigar o poder político a ser racional nas suas escolhas. Estes incentivos deverão concentrar-se sobretudo na modernização do tecido produtivo (inovação e desenvolvimento, ambiente, energia), na criação de emprego e em objectivos de coesão social e territorial.
Se todas as medidas sugeridas pelo grupo de trabalho fossem adoptadas estaríamos perante um choque fiscal…. Mas com as medidas fiscais que foram contempladas no OE/2010 e PEC não estão, já, os contribuintes perante um pequeno choque fiscal?
A expressão choque fiscal diz-me pouco. Normalmente é utilizada para referir ou pedir reduções de impostos ou aumento de despesa fiscal, que não é bem aquilo que o PEC nos traz, nem que o país necessita. Creio que o nosso sistema precisa não é de choques nem de grandes reformas mas de uma profunda reestruturação a partir dos princípios (capacidade contributiva, equivalência, redução da complexidade, equilíbrio entre garantias dos contribuintes e prerrogativas da Administração, etc.) existentes, dos quais a prática se tem muitas vezes desviado. Na actual conjuntura, tendo o país um défice e uma dívida pública sob forte escrutínio internacional, e sendo o cumprimento do Pacto de Estabilidade um compromisso de Estado e não de Governo, será difícil escapar a medidas fiscais que, mesmo sem aumento de taxas, conduzam a um aumento de carga fiscal. A questão central é a de saber se seria possível haver uma distribuição mais justa do aumento desta carga. Essa questão não a vejo suficientemente discutida.
No que toca às medidas de incentivo às empresas, o OE prevê a acumulação de benefícios de IRC e de Segurança Social na criação de emprego. Mas esta medida não acaba por ser contrabalançada com a limitação a 75% dos limites de benefícios fiscais, quando antes era de 60%?
As medidas de incentivo às empresas previstas no OE afiguram-se-me positivas, independentemente das limitações dos benefícios. Pior seria se as não houvesse. Para uma empresa que inicia a actividade – e que poucos lucros terá – será importante esta medida de apoio ao emprego. Mas é claro que o aumento da limitação dos benefícios fiscais de 60% para 75% (e as medidas relativas à Segurança Social são legalmente consideradas como tais) traduzirá sempre algum aumento da colecta das empresas que utilizem benefícios. Desconheço se há estudos que justifiquem os limites acolhidos.
Por esta via, as empresas não deverão se preparar para pagar mais IRC?
Tal facto será mais notório relativamente às grandes empresas, em especial no sector financeiro. Creio ainda que para aferir da real carga fiscal das empresas em IRC pode ser mais importante a forma como se determine a relação entre o Sistema de Normalização Contabilística e a fiscalidade, a generalização da facturação electrónica ou como se efective um maior controlo da fiscalização.
Esta é uma medida destinada ao sector financeiro, mas na verdade acaba por atingir de forma transversal a economia. Toda a entidade empregadora que obtenha um beneficio alargado porque criou postos de trabalho não acabará por ver a dedução ao IRC limitada?
O número de contribuintes afectado será limitado De resto, se a medida não fosse apresentada como transversal seria provavelmente levantada a questão da violação do princípio da igualdade, embora de forma discutível, pois o princípio da igualdade em sede fiscal não deve ser entendido como a mera igualdade formal, a igualdade perante a lei.
Com esta medida, para quanto poderá ser aumentada a taxa efectiva de tributação da banca?
Desconheço se existe alguma previsão oficial ou se ela terá sido tornada pública, de acordo com um princípio de transparência. O Ministério das Finanças já reconheceu que a taxa efectiva de tributação da banca ronda os 20%. A alteração do limite mínimo de imposto liquidado irá naturalmente contribuir para o crescimento dessa taxa efectiva, mas o efeito deve ser relativamente reduzido atendendo à proporcionalidade do volume de proveitos e de benefícios fiscais em causa. Existem algumas estimativas privadas que apontam para um aumento, no máximo, de 2 ou 3 pontos percentuais dessa taxa. Não deverá afastar-se muito dessa previsão.
Especialistas consideram elevada a taxa autónoma de 35% sobre as remunerações variáveis dos gestores e como factor que poderá travar a atracção de profissionais para Portugal. Partilha desta opinião?
Embora a tributação autónoma não seja, em teoria, a forma ideal de tributação, na actual conjuntura, a tributação autónoma dos gestores em sede de IRC não me repugna, dado o elevado nível de remunerações fixas que já auferem, a que acrescem as variáveis. É uma forma de moralização do sistema que se pode aceitar e que existe em outras sistemas fiscais. Quanto ao nível da taxa a aplicar, num plano estritamente fiscal, tudo depende da comparação com outros países. Importa ainda assinalar que na maioria dos casos o custo global dos quadros deste tipo depende da força negocial das partes e do interesse ou necessidade das empresas. Não creio que esta medida fiscal altere significativamente esse facto.
Se for pago um bónus de 27.501 euros aplica-se a taxa na totalidade, mas se for de 27.499 euros já não há nenhuma tributação… Não deveria haver progressividade na forma de aplicação desta taxa para evitar o planeamento fiscal para a fuga ao pagamento desta taxa?
É possível que a inexistência de progressividade potencie formas de planeamento fiscal. A forma de tributação destas remunerações por escalões seria porventura mais justa, mas traria mais complicações ao sistema fiscal. Não devemos esquecer que se trata de uma tributação autónoma em IRC e, como tal, por definição, não comporta qualquer elemento de progressividade que, como se sabe, neste imposto não é uma exigência constitucional. De qualquer modo, em casos de abuso, a Administração Fiscal tem sempre a possibilidade de aplicar a norma anti-abuso. Resta sempre a questão da real eficácia da medida, dadas as condições previstas na lei para a sua aplicação.
“SE FOR PEDIDA AGORA ALGUMA CONTRIBUIÇÃO ADICIONAL AO SECTOR FINANCEIRO, NÃO PARECE TOTALMENTE INJUSTO”
Fiscalistas consideram também a taxa de 50% no IRC, dirigida especificamente ao sector financeiro, discriminatória. Argumentam que um dos pilares do sistema tributário deve respeitar é o princípio da igualdade. Concorda?
O sector financeiro teve uma enorme ajuda do Estado em nome do risco sistémico que lhe permitiu sem contrapartidas visíveis atravessar da crise financeira, que, em grande parte, foi gerada pelos excessos desse sector. Se lhe for pedida agora alguma contribuição adicional, não parece totalmente injusto e estará de acordo com o princípio da capacidade contributiva. É, aliás, essa a política de Obama e, segundo parece da própria União Europeia. Quanto à questão da inconstitucionalidade, se entendermos o princípio da igualdade como devendo ter em conta a tributação efectiva e não a tributação nominal, a resposta será negativa. Num recente seminário, tive conhecimento que a questão já foi suscitada em Espanha e não foi julgada inconstitucional.
A tributação autónoma está a ser assumida como uma forma de tributar em IRC, mas esta não deveria incidir apenas sobre os lucros das empresas e não das despesas, como os bónus?
Por definição, a tributação autónoma visa combater abusos. Teve e tem por finalidade tributar determinadas despesas que de outra forma escapariam à tributação. Logo não tem a ver directamente com o lucro. É claro que uma generalização deste tipo de tributação não é de acolher pois desvirtua a lógica do IRC. Haveria que conseguir encontrar mecanismos alternativos eficazes que possibilitassem a sujeição a tributação de rendimento de terceiros pagos pelas entidades sujeitas a IRC, nomeadamente de sujeitos passivos de IRS sujeitos a taxas efectivas de tributação superiores às da entidade pagadora dos rendimentos. Mas até agora essa via não tem sido conseguida.
Não é um caminho perigoso do ponto de vista da constitucionalidade estar a desvirtuar o sistema ao tributar cada vez mais a despesa e não o rendimento?
É certo que a sua disseminação pode desvirtuar o desenho legal do tributo, mas é adoptada em outros sistemas fiscais e, como mecanismo temporário, não deve ser objecto de condenação a priori.
Acha que a amnistia do repatriamento de capitais no exterior será bem acolhida pelos agentes?
Provavelmente será, embora as questões mais importantes neste contexto não sejam de índole fiscal. Algumas das principais consultoras estão optimistas. Esse regime, se bem explicado e tiradas as dúvidas que ainda subsistem, poderá constituir um incentivo para o retorno de capitais extraviados e as estimativas existentes apontam nesse sentido. Mas há que ser prudente e não esquecer duas coisas. Primeiro, relembrar que o regime excepcional de regularização tributária de 2005, surgido na sequência de regimes congéneres na União Europeia, não deu grandes frutos. Em relação a esse regime, o novo regime exclui expressamente os elementos patrimoniais situados em países ou territórios não cooperantes e elimina a taxa para metade por investimentos em títulos do Estado português que era contrária ao direito comunitário. O que muda, pois, não é o regime em si mesmo, mas o contexto internacional em que o regime opera. O incremento da troca de informações entre Administrações tende a desenvolver-se, tornando o risco da ocultação de rendimentos mais notório. Mas, como diria um prudente jogador de futebol, prognósticos só no fim do jogo. Em segundo lugar, há que relembrar que, no plano dos princípios, estes regimes são sempre controversos. É um caminho não isento de perigos e também injusto. Poderá afrouxar a moralidade do sistema, dando a sensação que o “crime compensa”.
O impacto desta medida, do ponto de vista da receita, não teria sido mais efectivo se a medida fosse adoptada em 2009, período em havia maior instabilidade e incerteza nos mercados, evitando grande parte do repatriamento de capitais?
Ninguém sabe ainda qual será o real impacto na receita. Mas a ter algum, é possível que fosse maior se tivesse sido adoptada antes. Sem grandes certezas: em tempos de incerteza, o que os capitais preferem mesmo é não se mexerem muito.
Que medidas estava à espera no OE e no PEC e que não foram incluídas?
No OE não esperava grandes medidas, mas estava em crer que se iniciaria a tributação das mais-valias mobiliárias. Gostaria de ver o Governo definir que medidas do relatório do grupo de política fiscal deveriam a curto e a médio prazo ser introduzidas e que medidas deveriam e porquê ser rejeitadas. A minha convicção é que é mais fácil introduzir as reestruturações necessárias ao sistema fiscal em época baixa que em época alta. Quanto a mim algumas medidas mereceriam, desde já, especial atenção, podendo ter sido referidas no PEC: assumir a Lei Geral Tributária como lei de valor reforçado, em nome da estabilidade; transformar a DGITA em instituto público de regime especial em nome da sustentabilidade do sistema fiscal; adoptar a grande maioria das recomendações do grupo em sede de procedimento e de processo, em nome do crescimento; acelerar o processo de reforma do cadastro predial, sem a qual não há tributação sobre o património que seja justa e serena; prever-se a revisão do regime das taxas das autarquias locais, dadas as suas manifestas debilidades; apontar-se para a consolidação da legislação do IVA e para a revisão das taxas, bem como para a introdução do regime dos pequenos contribuintes; caminhar-se para a introdução da declaração separada em IRS. Enfim, considerar muitas das recomendações do Relatório do Grupo de Política Fiscal como um todo que merece ser analisado e discutido, coisa que espero que aconteça, em vez de se optar por políticas de pesca à linha.